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Somos todos garotos – Por: Ronald Rios

Escrito por: Ronald Rios
Ator, comediante e roteirista.

Somos todos garotos

Eu morei no Alemão desde que nasci até pouco mais de três anos atrás, quando me mudei para São Paulo para trabalhar em um programa de TV. Precisamente, vivia ali na Rua Tangará, no Morro do Adeus. Quantos vizinhos, eu e meus amigos enlouquecemos jogando linha-de-passe na rua e destruindo gradativamente seus portões com boladas? Muitos. Peço desculpas publicamente à Zélia da sorveteria pelos fortes chutes que demos em seu portão.

Quantos amigos eu fiz no Alemão? Muitos. Lembro de cada um deles. Precisaria de uma página só para falar de todos. Sinto saudade de passar a noite no sereno conversando com aqueles caras. Era o maior entretenimento que tinha lá para a gente: passar a noite na rua dando risadas. Também perdi muitos amigos, infelizmente. Alguns entraram para o crime. Foram presos ou assassinados. Alguns conseguiram sair para sempre. De outros, eu nunca mais tive noticia. Lembro especificamente de um.

Éramos muito grudados. Um mano três anos mais velho que eu. Ele já havia sido do movimento. Saiu. Voltou. Eu torcia para ele sair de novo. Ele sempre ia lá em casa. Eu tinha um videogame velho e a gente adorava jogar aquela parada. Às vezes, ele me dava de presente alguma munição de fuzil AR15, souvenir de seu trabalho. Eu devia ter umas 3 ou 4 balas em casa. Daquelas vermelhas traçantes, sabe? Que iluminam o céu do Alemão, para o mal numa guerra, ou para o bem naqueles shows pirotécnicos improvisados com muitos ros no réveillon.

É muito curioso como eu me acostumei a ver essa imagem e achar normal. Milhares de ros. Na guerra e na glória. Assim como ver homens com armas nas esquinas à noite. Numa boa, sorrindo, conversando. Fazia parte da vida. Assim como ouvir roteio a noite toda durante as guerras ― especialmente ali entre 1996 e 2000. Era algo que eu, logicamente, mesmo sabendo que era ruim, tinha a ingênua sensação de que “fazia parte” da vida. Eu não conhecia outra vida. Essa era a vida que tinha para a gente.

Lembro de vários episódios tristes, mas normais. Para mim. Para a gente. Era nossa única realidade. Não havia revolta nem susto. Era parte de “morar no morro”. Pela manhã, balas na minha janela. Pela madrugada, bandidos se escondendo na sala da minha casa enquanto eu dormia. E assim foi minha infância. Não foi fácil, mas poderia ser pior.

Mais velho, trabalhava na Zona Sul e lá fiz amigos. Mudei para São Paulo. Mais amigos. E pude observar como meus novos amigos, que nunca subiram num morro, enxergavam a violência: crime era assalto. Crime era uma explosão rápida de alguns segundos na rua. E dava muito medo neles ― com razão. E percebi algo chocante: eu havia sido anestesiado pela violência diária de morar numa área dominada pelo tráfico.

Não sei se UPP é a solução para a paz nas favelas. Não gosto muito quando ouço que o Alemão foi “pacificado”. A expressão faz parecer que as coisas estão perfeitas. Não há paz só pela existência daquela casinha da UPP. Outros elementos têm que ser colocados lá para que as pessoas vivam realmente em paz de espírito.

Já tem um ano que não dou um pulo no Adeus. Tenho saudades dos meus amigos. Os que também já saíram de lá e os que estão lá para toda a vida. Até dos amigos virtuais que fiz por saberem que venho daí. Sinto saudades dos amigos perdidos para o crime. Meu peito dói ao lembrar daquele meu amigo com quem eu jogava videogame. Ele não conseguiu sair da vida do crime e faleceu, vítima dessa maldita guerra das drogas. Guerra das drogas em que só morre gente, nunca a droga. Eu ainda morava aí quando isso aconteceu. A ele e a todos que se foram ou perderam amigos e familiares nos inúmeros tiroteios ocorridos no Alemão ― e em todas as quebradas ―, eu dedico este texto.

A gente nunca conversava sobre seu trabalho e acho que era por isso que passávamos tardes tão divertidas. Ele era um garoto como eu. A necessidade bateu e ele se entregou à vida do crime. Eu dei mais sorte. Ele não. Não me iludo, sei que o fator racial contribuiu muito para que algumas portas se abrissem para mim. Se foi dicil crescer num país que não respeita pobre, eu sendo branco, imagina se eu fosse negro? Ou você realmente acha que eu sou o cara mais inteligente e perspicaz a ter nascido no Alemão? De jeito nenhum. Cresci com vários caras muito, mas muito mais inteligentes do que eu. Vivemos num país com poucas oportunidades para o pobre e para o negro. O racismo é uma herança maldita que deixa marcas violentas na vida de jovens negros por todo o Brasil. Deve ser combatido, ser pauta de nossas conversas. Nunca ignorado como se fosse um problema que não existe.

A história do meu amigo é uma história que acontece todo dia em todas as periferias brasileiras. Garotos virando soldados antes de virarem homens. Caindo mortos em vielas antes de ter outra escolha. Mas ainda assim, por favor, nunca se esqueça: são garotos.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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