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Crônica | A morte é de ferro

Hoje, 20/07/2018, completa-se um mês em que a trágica história ocorreu, uma história baseada em fatos reais, mas queria que não fosse. Lembro de cada tiro, de cada passo das pessoas da rua correndo em busca de proteção e o som de uma mãe chorando.

Eram oito e meia da manhã. Meu celular despertava, alertando que devo me arrumar para a faculdade. Abri a janela e a luz do sol toca meu rosto, me deixando cego por alguns segundos.

Minha mesa de estudos estava bagunçada,  impedindo de procurar minha carteira. Livros e mais livros espalhados aleatoriamente no meio das minhas anotações. Depois de minutos de procura, finalmente a encontro e verifico se a minha identidade está dentro dela. Minha mãe, desde que eu era pequeno, dizia para sair com a identidade, é quase que uma questão de sobrevivência, pois as chances de um policial parar alguém que é negro e favelado são altíssimas. Não andar com o documento é a chance para um gatilho inicial de azar.

Por volta das 09:15h  daquele dia, notava que estava atrasadíssimo! Coloquei o meu tênis preto quase desbotado e corria feito louco em direção ao portão. Quando estava prestes a girar a maçaneta enferrujada,  dois sons me fizeram gelar e ficar sem ação, o grito de “sai da rua, morador!” e o helicóptero sobrevoando bem baixinho a minha favela.

– Sobe já pra casa, menino! Fica aqui no chão e não levanta. – Disse a minha mãe com um grito de ordem e preocupação.

Eu estava na linha de fogo, deitado no chão frio e com medo. Meu coração só não batia mais rápido do que os disparos vindos do helicóptero.

Quando me levantava, achando que a operação policial havia terminado, mais tiros eu escutava. Da minha casa se ouvia uma criança chorando e os passos fortes das pessoas correndo na rua, tentando encontrar abrigo e proteção. O som de tudo me causava medo.

Os sons dos tiros, dos gritos na rua e do helicóptero atirando quase infinitamente eram uma orquestra do medo, a melodia que machuca os ouvidos e acorda os sentimentos de pânico.

Pela internet, os vídeos feitos nos celulares dos moradores daqui já se espalhavam. A maioria deles mostrava o helicóptero atirando covardemente. Eu, ainda no chão da sala, deitado, tentando me proteger de alguma forma.

Imagine as crianças que estavam indo à escola? As pessoas que estavam na rua indo para o trabalho? Tudo rompido por uma operação policial “bem organizada”.

O tiroteio para e, quando me dou conta, não adianta mais ir para a faculdade. Na televisão se ouvem diversos relatos, mas um repórter disse algo que me chamou atenção: “O helicóptero sobrevoando a essa altura pode causar risco aos policiais que estão ali dentro”.

Horas se passaram e já é noite. Me deparo com a seguinte notícia: “O adolescente Marcus Vinicius da Silva, de 14 anos, ferido durante um tiroteio na Maré, nesta quarta-feira (20/06), morreu no início da noite.” O helicóptero sobrevoando àquela altura causou risco para quem mesmo?

E a imagem que fica na minha cabeça é a de um uniforme escolar, marcado e assinado pelo Estado.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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