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#Conto | Desculpa mãe

O sol gélido da manhã de agosto banhava as paredes dos barracos. Entre o canto dos galos, passos eram ouvidos das pessoas que começavam a sair de suas casas. Estremeci de frio ao levantar, caminhei até a cozinha para beber um copo d’água, depois de acordar subitamente de um pesadelo. Sonhei que alguém se aproximou de mim e descarregou um pente de uma pistola calibre 380.

– Agora eu quero ver ladrão. – Disse.

Com o coração na garganta, fiquei tenso, a solidão de companhia me fez relembrar de que quase morri num assalto a banco, era fita certa. Mas um p2 que tinha ido sacar dinheiro na agência disparou reagindo, corri o quanto pude, mas o parceiro rodou. Vish. Acreditava que todo plano de assalto seria diferente dos amigos que morreram depois da frustração da falha, mas depois dessa fita eu não me arrisquei mais em assalto assim. Mas o ciclo é vicioso, e logo me vi tentado voltar. Dessa vez foi um posto de gasolina, eu e o parça chegamos de moto e enquadramos o frentista.

– Bora, passa o dinheiro. – Gritei.

– Sou trabalhador, tenho filhos, não me mate por favor… – disse o frentista entre soluços.

Na fuga fomos surpreendidos por uma viatura, tomei um no ombro, e caí da moto próximo da favela, o parceiro continuou e a viatura o perseguiu. O pronto socorro estava sendo vigiado por pms que foram avisados do assalto, então um farmacêutico que morava por ali me socorreu. Minha mãe chorava, pedia em oração pelo filho. Nordestina, chegou ao Rio de Janeiro como a maioria o faz, na ilusão da vida melhor, ascensão social, mas acabou indo morar numa das favelas do Complexo da Maré. Lá conheceu meu pai, envolvido com o crime, e mesmo relutando em aceitar a condição de vida de seu amado, a paixão que tinha pelo homem de expressão fria a manteve com ele até a viuvez, quando a bala que o matou feriu também o coração dela, ferida que só cicatrizou com a sua morte, no dia 23 de março de 2006.

Depois que meu pai passou a fazer aniversário no dia 2 de novembro, dia de finados, minha mãe devotou seu amor a mim, mas nunca soube retribuir o sentimento devotado pela mulher negra, baixa, de coração grande. Pediu esmola, trabalhou como doméstica, fazia bico costurando, tudo pra me oferecer do bom e do melhor, mas a rua sempre me atraía mais. Sonhava em me ver formado, mas o respeito que meu pai conquistou na favela pesava sobre os meus ombros e me herdou certo conceito no meio da malandragem, então ingressei no crime. Conheci o Duda, traficante, que fazia estica pra playboy e escoltava casa pra fazer assalto, rapidamente nos tornamos amigos. Cheirava, comecei também. No início era só uma rapa da carreira que ele jogava na mesa nas festas que promovia, depois o consumo foi aumentando. Drogas, bebidas, mulheres, era tudo que eu sonhava, me sentia realizado. Mas o vício tomou conta de mim, e, numas dessas, estava pancado e rodei pela primeira vez com um final de carga. Réu primário, cumpri uns três anos, eu acho. Não tinha um dia de visita que minha mãe deixou de comparecer para trazer cigarros, biscoitos, bolos deliciosos que fazia, mesmo enfrentando as filas, o sol escaldante, o descaso dos carcereiros e as condições degradantes dos presídios, fiel mantinha a promessa de tentar fazer do filho advogado. Acreditava na minha ressocialização.

Prometi que quando saísse tomaria jeito, mas uma semana depois de ter saído eu já tava no ciclo maldito novamente. Cheguei até a fumar crack e na fissura roubei o relógio de casa pra trocar por droga, minha mãe tentou impedir.

– Cala boca velha, eu vou fumar. – Gritei e esmurrei a porta do armário.

– Filho, não… – ela chorava.

Consegui uma Glock e junto com Duda fomos pro arrebento, podia ter sido perfeito, mas o crime é caminho pra dor. Com o dinheiro fizemos farra no fim de semana com muita bebida e drogas, mas quando cheguei em casa soube que minha mãe tinha sido levada pro hospital. Não teve jeito, morreu de ataque cardíaco e eu não tive tempo de cumprir a promessa de me regenerar. Hoje, só mato saudade em sonhos, mas espero que do céu ela possa ver minha vitória, estou no 2° período de direito. Desculpa mãe.

tarcisio lima
tarcisio lima

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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