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Coluna | Senhora Resistência

CRÔNICA:

08/12/2017, último dia de aula na faculdade. Durante todo ano me alimentava de textos acadêmicos exaustivos, cercados por um vocabulário pesado. Eu era um leitor frustrado que só queria voltar a ler com prazer.

Queria apenas ler uma antologia e ter como companhia um café forte, silêncio e o meu gato dormindo entre as minhas pernas. Apenas queria ansiosamente abraçar esse momento.

Na saída da faculdade, fui pegar o ônibus para voltar para casa. Enquanto eu esperava olhava uma senhora, negra, bem baixinha, usava uma blusa vermelha manchada e uma saia preta. O que mais me chamou a atenção é que mesmo com lugar disponível no ponto de ônibus, ela preferiu não sentar. Estava apoiada apenas na sua bengala de madeira que parecia ter uns quatrocentos anos de existência e que ainda sim, visualmente, poderia segurar um elefante de tão forte que aparentava. Era um misto de resistência com feridas que não pareciam estancar.
Minha curiosidade me fez agir, decido então se aproximar da humilde senhora.

— Olá boa tarde! A senhora tem certeza que não deseja sentar?
Perguntei para ela.

— Sim, meu filho. Estou aqui esperando meu bisneto. Marcamos nesse local e se eu sentar, corro o risco de perdê-lo de vista. Agradeço sua preocupação, mas pode ficar tranquilo que a minha bengala me dá apoio, mesmo estando bem velhinha como eu.
Disse ela com uma pitada de humor.

Conversa vai, conversa vem até que ela diz.

— Então você gosta de escrever poemas e gosta de escrever sobre os outros, sobre a vida? Incrível, gostaria que escrevessem sobre mim, mas acho que não teriam coragem de me ler, chorariam ainda na primeira página. Fui escrava ainda criança, abusada sexualmente durante a noite e chicoteada durante o dia. Fui tratada como ninguém deveria. Poderia simplesmente estar andando sem essa bengala, mas sabe porque eu prefiro que ela esteja comigo?

Deduzi que pelo o que ela me disse, achei que o motivo dela estar com a bengala fosse consequência dos ferimentos daqueles que à machucaram no passado ou simplesmente da sua idade, porém me surpreendi com a resposta que ouvi.

— Essa bengala era da minha mãe, é a única lembrança que tenho dela. Ela foi morta por tentar fugir das amarras da escravidão, mas foi morta e chicoteada por doze horas. Eu só tinha 6 anos.

Enquanto ela falava, via às lágrimas escorrerem sobre a sua pele enrugada.

— Só me restou isso dela. Quando estou com a bengala, estou com a minha mãe. Ela que me mantém de pé. Ninguém teria coragem de ler essa história, muito menos, interesse. Às pessoas hoje em dias estão piores do que a minha época. Uns estão machucados os outros apenas com palavras mais dolorosas do que às chicotadas que minha mãe levou.

Agora com licença, meu querido, tenho que ir, meu bisneto vem vindo. Espero um dia te encontrar novamente e que você possa escrever sobre mim, mas não me culpe se ninguém conseguir me ler.

E assim ela se foi, me deixando no ponto com várias reflexões. Não me lembro o nome dela, mas ela, para mim, ficou marcada como Senhora Resistência.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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