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Realidades que se transformam com sprays de tinta #Opinião

Um estilo de arte que, por vezes, é marginalizado. E vez ou outra é considerado como depredação de ambientes públicos. Mas de onde vem essa ideia de que expressão artística não é politicamente correta? Eu posso dizer que tive sorte na minha infância. Pelo menos duas vezes no mês eu me sentava numa escada em frente à minha casa e ficava encarando aquele punhado de latas de tinta se espalhando em gotículas de cor nos muros das casas vizinhas. E por ser muito nova, tinha que escutar também que eu não podia ficar tão perto das latas de tinta por conta do cheiro forte que ela exalava. Mas eu posso afirmar que o cheiro não é tão forte quanto às mensagens que elas transmitiam.

Foi assim que eu vi a arte do grafite aparecer na minha vida, e na minha comunidade. Era sempre um grupo de, pelo menos, cinco pessoas, com sprays de tinta na mão, um rascunho de desenho na outra, um monte de ideias na cabeça e um propósito em comum: colorir a realidade preta e branca de uma favela que vivia escondida, e que era invisível socialmente. Eles chegavam cedo, por volta das 7 h. Eu passava uma água na cara, pegava meu pão com manteiga e meu café com leite morno, e corria pra escadinha em frente ao meu portão. Minha mãe sempre quis ver essa minha disposição pra ir pra escola de manhã, mas nunca consegui realizar esse sonho dela. Em meio aos goles do meu bom “cafécumleite” eu ficava imaginando o significado das imagens que ficavam gravadas naquelas paredes. Sem senso crítico, eu só dava meu voto como “bonito” ou “esquisito, mas gostei”. De vez em quando eu me arriscava a fazer alguns rabiscos no meu caderno na tentativa frustrada de imitar meus artistas favoritos. Na minha concepção e na concepção da minha eterna admiradora, mãe, meus desenhos eram os melhores que Belo Horizonte já viu. Era um talento nato.

Mas pensemos juntos, até onde o grafite pode mudar a realidade de uma favela? Ou, até onde o grafite pode mudar a realidade de um favelado? Toda cultura que vem da periferia pode mudar a realidade dela. No caso grafite, especificamente, ele traz uma aceitação dos moradores das comunidades. O povo gosta de cor, gosta de arte urbana e singela. E aquela mistura das mais lindas cores apagava o cinzento do muro de concreto. Eu via meus vizinhos sorrir quando um grafiteiro pedia com toda gentileza “podemos fazer uma arte aqui no seu muro?”. Quando falamos do público jovem então, esse sim, se identifica muito mais com essa arte. Quando vejo que um colega meu que poderia estar no submundo das drogas, ou no pior dos casos, morto pelo crime, e ao invés disso está se dedicando a ser um grafiteiro, poxa, é uma alegria tão grande que me faz acreditar que ainda existe uma vida mais leve. Ainda tem esperança. Eu vejo que uma realidade muda quando existe a oportunidade de um caminho melhor. E o grafite é um desses caminhos.

E uma das minhas felicidades é abrir o jornal impresso local e ver que o projeto não ficou escondido aqui na minha vila. Ele se expandiu. Até os maiores meios de comunicação de Minas Gerais já noticiaram que os grafiteiros que pintavam muros de favelas, hoje recebem auxílio da Lei de Incentivo a Cultura. Hoje, esses mesmos grafiteiros são solicitados pelo Prefeito da cidade para colorir paredes de viadutos, e outros imóveis públicos. São os mesmos meninos que batiam no meu portão. São os mesmos que eu via todas as manhãs em frente a minha casa.

Olhe só, um grupo que “saiu” de uma das vilas mais esquecidas de uma cidade. Um grupo que não nasceu privilegiado pela vida, nem sequer teve as melhores oportunidades. Mas não tem problema não, a gente não precisa das melhores oportunidades pra chegar ao topo, a gente só precisa de uma, e fazer dela a melhor que já recebemos. E o grafite foi essa escada para esses meninos;

O grafite tem uma identidade única. Ele nasceu no gueto. Cresceu em periferia. É uma arte visual urbana. Deixa o povo pintar a vida. Pintar a realidade. Pintar os muros e viadutos. Quem sabe um dia, com tanto talento nas mãos, eles pintem um futuro melhor. Pra quem acredita em um.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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