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Prova de tiros #CRÔNICA

Já são quase seis horas da manhã de uma terça-feira e eu de mãos dadas com o nervosismo para a prova que ocorrerá hoje na faculdade. Mal consegui dormir com tamanho desespero.

Pego o meu café e bebo pensando nessa bendita prova. Saio de casa e lembro que mais uma vez que esqueci as minhas chaves, mas isso era o menor dos problemas, o meu foco no momento era A PROVA. Vejo as crianças felizes indo para as escolas e me bate uma nostalgia com um misto de inveja. Queria estar ali no lugar desses pequenos, saudade desse tempo em que já fui um pequeno, a minha única preocupação era a de chegar em casa a tempo para assistir x-men.

O que muitos não sabem é que moro na Maré, uma favela que o pessoal do asfalto não sabe muito bem o que é. Você acha que a Maré é só uma pequena favela? Caro leitor(a), você está muito enganado, mas vou te poupar desse assunto e voltar ao anterior, a minha prova.

Por sorte a distância entre a faculdade e o local que moro é pequena, tão pequena que dá para ir andando. Não queria arriscar, achei melhor ir andando até o ponto de ônibus.

Lá longe vejo uma senhora de mãos dadas com uma criança chorando “Não vai pra lá! “disse a senhora. Eu sem entender nada perguntei o motivo e ela mais uma vez “Não vai pra lá. O Caveirão entrou” e do nada a mulher sumiu, feito um traçante. Para o meu azar eu estava longe do ponto de ônibus, andaria mais uns seis minutos e mesmo com aquele monstro mecânico andando, tinha que ir para o ponto. Andei uns cinco metros e escutei aquele barulho que não desejaria na playlist de ninguém, sabe aquela música chata que você odeia? Então, esse som é mil vezes pior, ele te causa medo, insegurança, desespero e pode arrancar sua vida, sim, eram os tiros, essa banda não queria ouvir nem naquele momento, nem nunca. Sabe quem patrocina esse show? Não? Nem te conto, se não, você vai ficar em péssimo Estado.

O fuzil não parava de gritar e eu não sabia para onde correr. No meio dessa aflição toda, uma senhora de cabelos grisalhos e bem simpática, abriu a porta da sua casa e me deixou entrar, a gente ficou no chão da casa dela abaixados, deitados. Ela segurava um terço e orava fortemente pela sua neta que estava na escola, dizia mil Pai Nossos e outros mil Ave Maria. A senhora me abre as mãos e pedi para orar com ela, confesso que não tenho ligação com nenhuma religião, mas naquele momento queria passar energias positivas para sua netinha e ajudar de alguma forma. Eu só fechei os olhos e desejava que todas as crianças, todos os moradores, estivessem bem naquele momento. A essa altura já tinha desistido da prova, a minha vida era a maior preocupação e acredito que era a de todos os moradores na Maré.

O show se encerra, e a monstruosidade vai embora. Eu desisto de ir para faculdade e dou um forte abraço para a senhora que me abrigou, era o único meio de eu agradecer. Não sabia o nome da humilde senhora, mas durante a sua reza, ela sempre falava o nome da sua netinha, Fernanda. Ela mostrou até uma foto da linda menina, parecia ter uns 7 ou 8 anos.

Mais tarde, pergunto por Whatsapp para a Vitória, uma amiga minha da faculdade, como foi a prova e se haverá uma outra avaliação para quem faltou. “BRENO, CORRE AQUI AGORA E VEM VER ISSO!”. Saí do quarto correndo e atendi o pedido da minha mãe, ela me chamava a atenção de uma reportagem que passava na televisão informando sobre o tiroteio. A notícia era a seguinte “Uma menina de 7 anos morreu após ser atingida por uma bala perdida no Parque União, Complexo da Maré, Zona Norte do Rio, na manhã desta terça-feira. Ferida em um dos ombros, Fernanda Adriana Caparica Pinheiro foi socorrida por moradores e levada para o Hospital Geral de Bonsucesso, por volta das 20h, mas não resistiu aos ferimentos”.

*NOTA DE ESCLARECIMENTO DO AUTOR: A crônica foi baseada em dois fatos reais. O primeiro me refiro ao fato de estar indo para a faculdade e ser acolhida pela senhora, porém a reza não era para a menina Fernanda, pois não tinha grau de parentesco algum com a mesma. A reza era para o seu marido que havia saído para trabalhar estantes antes do tiroteio começar. Fernanda existiu sim, e infelizmente foi morta por uma bala perdida enquanto brincava na lage de casa. Eu apenas fiz um misto de dois tristes fatos.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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