Pesquisar
Close this search box.
Pesquisar
Close this search box.

ARTIGO | Dia da consciência negra, comemorando, refletindo e me rebelando

Ao nos deparar com a proposta de pensar o dia da consciência negra e seu significado me vi premido a uma breve investigação bibliográfica sobre o tema e a uma pesquisa superficial na internet e o que pude constatar é que encontramos inúmeros relatos e narrativas sobre o dia da consciência negra, sobre o 20 de novembro.

Autor: Sergio José Dias – professor de História e miltante do movimento negro.

Para nós ativistas do movimento negro, com seu ensejo ainda no início da década de 1970, o dia da consciência negra surge da necessidade de construir uma nova narrativa. Um discurso que desse conta de nossas necessidades de mudança, mesmo que fosse ainda durante a ditadura militar. Afinal, nós, ficávamos incomodados como os livros de história, nossos professores, e a sociedade em gela, encaravam o 13 de maio, o dia da abolição da escravatura. Podemos afirmar inclusive que o 20 de novembro emerge como uma necessidade de contraditar o discurso oficial sobre a Abolição que potencializava o papel da Princesa Isabel, então chamada de “a Redentora” e invisibilizava toda a luta histórica de pessoas negras escravizadas e suas instituições contra a escravidão. Esta luta não se iniciara no final do século XIX quando a abolição foi proclamada, mas quando o primeiro africano escravizado partiu de África, com suicídios e greves ainda nos “tumbeiros” e se intensificava ao tocar o solo do continente escravizador.

É certo que esta narrativa sobre a abolição assenta uma ideia que foi sendo gradativamente introjetada na sociedade brasileira e institucionalizada. Tal desatino destituía os negros de seu papel enquanto sujeitos históricos de seu processo de emancipação. Nas palavras de Robert Dilbert Jr que escreve sobre as imagens construídas sobre a Abolição e a Princesa Isabel:

“A consolidação da imagem da Princesa Isabel enquanto a “Redentora” dos escravos aproxima-se de uma interpretação que atribui aos negros um papel secundário no processo de superação do escravismo.”

Hoje, sabemos que a luta pela abolição envolveu diferentes atores sociais da sociedade brasileira, com o protagonismo de negros livres e escravizados, e que esta luta sofreu um processo de apagamento deliberado e fomentado por nossas classes dominantes, durante o século XX.

O mais incrível é que somente a umbanda, religião de matriz africana, retratava e retrata o dia 13 de maio com uma data evocativa de luta, se comemora na umbanda, neste dia, a festa dos pretos velhos.

Bem, e como foi construído o 20 de novembro e seu simbolismo?
Devemos ao ativista, poeta e professor gaúcho Oliveira Silveira a ideia de fazer do 20 de novembro o nosso marco libertário. Como ele mesmo disse:
— Estávamos insatisfeitos com o 13 de maio. Havia um grupo de negros que se reunia na Rua da Praia (no centro de Porto Alegre) e o nosso assunto, invariavelmente, era a questão negra e o fato de o 13 de maio não ter maior significação para nós. Logo, surgiu a ideia de que era preciso encontrar outra data.
E prossegue:
— Como gostava de pesquisar, aprofundei-me nisso. E encontrei material, cuja fonte era Édison Carneiro, autor do livro O Quilombo dos Palmares, indicando que Zumbi dos Palmares havia sido morto em 20 de novembro (de 1695). Essa informação foi confirmada no livro As Guerras dos Palmares, do português Ernesto Ennes, no qual foram transcritos documentos. Já que não sabíamos o dia de seu nascimento ou do início de Palmares, tínhamos pelo menos a data da morte de Zumbi, o último rei do Quilombo de Palmares, em Alagoas. Então, promovemos uma reunião, que originou o Grupo Cultural Palmares, cuja ideia era fazer um trabalho para reverenciar Palmares e Zumbi como algo mais representativo que 13 de maio.

É certo que era uma preocupação que habitava o inconsciente de todo o militante negro, nos perturbava o absurdo de que a nossa liberdade não fosse fruto de um combate protagonizado por nossos iguais.

A ideia se espalhou rapidamente, em meados dos anos 70, a data começou a ser comemorada em São Paulo e no Rio de Janeiro. No final de 1978, a assembleia do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNUDR), realizada na Bahia, aprovou o 20 de novembro como dia oficial de celebração da comunidade negra brasileira.

O Dia Nacional da Consciência Negra, foi incluído no calendário escolar nacional em 2003 e, em 2011, instituído oficialmente pela lei federal 12.519. A regulamentação não transformou a data em feriado nacional e fica a critério de cada estado e cidade optar por ser feriado ou não.

Dia 20 de novembro para a sociedade brasileira, comemorar, refletir e rebelar
O dia da consciência negra como muita gente já disse, antes de ser um dia de comemoração, com suas feijoadas, feiras, workshops, festas, evidentemente, se não fosse a pandemia que estamos vivendo, serve também como um dia de reflexão. Sem dúvida nesta data devemos pensar em nossa identidade negra,, nos milhões de escravizados que aqui chegaram em condições sub-humanas, no heroísmo de Zumbi dos Palmares, um ícone para todos nós, no racismo estrutural que nos atormenta cotidianamente, de segundo em segundo, destruindo a nossa autoestima e de nossos familiares, na branquitude que fornece o combustível essencial para o racismo persistir secularmente. Enfim, estas observações, dão ao dia 20 de novembro um sentido reflexivo do qual não podemos fugir.

Entretanto, as centelhas da revolta, da rebeldia, também estão presentes, senão vejamos, nossa conjuntura não é das melhores. Temos um governo federal, estadual e municipal comprometido com extermínio de nossa juventude, e que não o nega. O coronavírus atinge as populações favelizadas, que tem no SUS a única tábua de salvação. O desemprego e sua condicionante, a uberização (informalidade) atinge números absurdos, tornando-nos homens e mulheres negras, vítimas preferidas da precarização do trabalho e de um processo de semiescravidão, com a perda de direitos trabalhistas históricos.

Temos Agatha, João Pedro, Miguel e tantas outras crianças e adolescentes negros para recordar o despautério de suas mortes. Cada um de nós conhece ou ouviu falar, não pela mídia, mas por pessoas próximas, um parente, um amigo, um conhecido que tem uma história dessas para contar.

O encarceramento da juventude negra assume números alarmantes, já somos a terceira população carcerária do planeta. O ciclo vicioso e maldito de homens e mulheres negras permanece. Há famílias em que encontramos, avós, pais, filhos e netos com passagem no sistema prisional.

Outro dia, na Globonews, vi Sardenberg, Waldvogel e um outro jornalista, todos brancos, fazendo loas aos seus antepassados, imigrantes europeus, que aqui chegaram com uma mão na frente e outra atrás e que conseguiram fazer seus filhos progredirem. Pois bem, o que ficou para os descendentes dos africanos escravizados?

É, o dia da consciência negra permite estas observações, podemos comemorar, refletir e se revoltar com a realidade da população negra. Ainda não é um feriado nacional como tantos dias da cultura branca, natal, carnaval, semana santa, o são. Caberá a nós, portanto, lutar para fazê-lo e muito mais.

Compartilhe este post com seus amigos

Facebook
Twitter
LinkedIn
Telegram
WhatsApp

EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

Contato:
[email protected]