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Maconha: sem reflexão não há transformação

Este texto é um convite para, juntos, pensarmos no que mais afeta o dia-a-dia da Favela

Há uma frase que já escutei muita gente falar: em “certos assuntos”, como política, futebol, homoafetividade, aborto, religião, dentre outros, não devemos comentar, muito menos discutir. Isso porque, como há possibilidade de divergência nas opiniões, muitas vezes nos acostumamos a deixar tudo como está, só para “evitar a fadiga” de perder o precioso tempo em uma discussão sem fim. Para nós, moradores de favela, um assunto muito próximo, porém intocável, é o das drogas.

Nossos ouvidos foram há décadas, habituando-se com o som dos anúncios de vendas, nossos olhares foram naturalizados pelo consumo por pessoas próximas e distantes, além da habilidade que muitas mãos desenvolveram para apertar o cigarro de maconha. Apesar de cotidiano, as discussões sobre liberação e regulamentação das drogas acontecem geralmente, para fora da favela. Mas, de quem seria o interesse para que esses assuntos “complexos” não sejam discutidos e refletidos por simples moradores de favela? Qual é o movo de nos deixarem de fora das pautas diárias que mobilizam a cidade?

De uma maneira geral, há um apetite pelo consenso que nos afasta dos avanços e até dos retrocessos. Por que não?! Meu convite, neste texto, é experimentar o contrário… A gente tem a tendência de pensar que esse não é um problema nosso, que quem defende a comercialização das drogas é só o usuário, aquele viciado. Você pode pensar: “Eu não uso maconha, isso não é um problema meu”. Mas quero compartilhar alguns pontos, que não vão te convencer, mas vão provocar uma reflexão a cerca do tema.

Primeiro ponto: a lógica de combate contra a comercialização e aos usuários de drogas é extremamente ruim. Quem morre nessa cruzada moral somos nós, moradores de favelas, são nossos amigos, nossos familiares e não quem está fazendo essa “política da guerra”. Não, não estamos em guerra. Eu sinto que nos é imposto uma sensação de insegurança completa e medo por todos os becos. A quem isso interessa? Ao nosso governo, que justifica mais repressão, pois os traficantes estariam muito organizados e totalmente fora de controle. Será que é isso mesmo? Tantos interesses financeiros que eu nem sei bem ao certo de que lado ficar. Só sei que eu não recebo nenhum dinheiro por isso. Só escuto tiros, diariamente, quando tento descansar em casa.

Segundo ponto: essa política contra as drogas, em especial contra a maconha, é financeiramente cara, já que todo o esquema policial está direcionado para o combate ao traficante de drogas. Será que a nossa polícia nunca vai se tornar realmente cidadã e próxima da população?

Terceiro ponto: a realidade em que vivemos demonstra que esse esforço de combate às drogas é ineficiente, violento e seletivo. Quem sente na pele somos nós, que ficamos impedidos de fazer as atividades mais simples (ir ao mercado, à escola ou ao trabalho) quando a favela está em chamas, com tiros por toda a parte.

Quarto ponto: um artigo sobre os efeitos adversos da maconha, publicado no The New England Journal of Medicine, por pesquisadores americanos do Naonal Instute on Drug Abuse, aponta que não há relação entre a liberação da maconha e o aumento do consumo de outras drogas, inclusive, os mesmos estudos dizem que “a porta aberta” pode ser também o cigarro e a bebida alcoólica. O renomado Dr. Dráuzio Varella também já comentou em diversos posts no seu blog (hp://drauziovarella.com.br) sobre a regulamentação da maconha.

Quinto ponto: o fato de que essa discussão precisa sair do âmbito da segurança pública e ir para a saúde. Um avanço conquistado recentemente foi a permissão do uso de canabidiol, um dos 80 princípios avos da maconha, para fins medicinais.

Se hoje a moda é um experimentalismo institucional (pelas grandes camadas de discussão política), por que ignoram que podemos participar de maneira proativa das trajetórias de políticas públicas, se isso afeta diretamente o nosso cotidiano? Nós sentimos diariamente na pele, mas nossas ações e preocupações cotidianas parecem não dar espaço para pensar em coisas tão complexas assim. E por falar em preocupação, recentemente, o projeto de lei que pretende regulamentar a produção, uso, e distribuição da cannabis (maconha), foi arquivado na mesa da câmara dos deputados, anulando qualquer possibilidade de discussão sobre o tema.

Ficamos sempre submissos à opiniões de fora: da academia, do Congresso, das inúmeras plenárias e audiências públicas, que ocorrem quando eu e você estamos no trânsito, trabalhando ou cuidando dos filhos. E para nós, simples moradores de favela, o que nos resta? Nos restam os resultados de escolhas políticas que não fizemos.

O objetivo deste texto é propor uma discussão política sobre o assunto. Acredito que isso pode, e deve, partir de nós, que somos julgados favelados e maconheiros, mesmo sem nunca ter do contato direto com a droga. Afinal, quem nunca ouviu aquele: “Pô, você que é do Alemão, traz uma parada lá pra mim?!”

Daiene Mendes é estudante de jornalismo, Diretora Executiva da ONG Voz das Comunidades.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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