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OPINIÃO | As barreiras para “sair do armário” na favela

"A minha percepção sobre quem cresce dentro de uma favela sempre foi de muito receio sobre o que poderiam falar de mim ou como os episódios de violência poderiam se apresentar em meu cotidiano."
Marsha P. Jhonson

Na Foto: Marsha P. Jhonson

Antes de iniciar qualquer tipo de debate nesta publicação, tenho como obrigação reforçar todo o meu agradecimento a Marsha P. Jhonson, Sylvia Rivera e a todos, todas e todxs que contribuíram para que nossas vozes fossem ouvidas, para que nossos corpos fossem respeitados e para que fôssemos livres para amar em uma sociedade que tem como luta a tentativa incansável de nos invalidar. Marsha foi uma travesti, preta e pobre que lutou contra a forma violenta que a polícia de Nova York agia contra comunidade LGBTQIA+ no dia 28 Junho de 1969, o que deu origem à conhecida Revolta de Stonewall e também ao hoje celebrado Mês do Orgulho LGBTQIA+

Trouxe para mesa em que começo a escrever sobre a comunidade LGBTQIA+ alguns exemplares de livros lidos por mim que abordam questões da militância de gênero, raça e classe, na tentativa de não errar ao dissertar sobre as vivências de corpos não normativos em zonas periféricas. As referências vão de Bell Hooks à Jaqueline Gomes de Jesus, mas acredito que assim como a linguagem acadêmica pode nos ajudar a compreender qual é o verdadeiro significado da palavra “representatividade” e sobre como ela pode ser fundamental para alcançar mudanças do caráter social dentro de um indivíduo, também acredito que ela pode nos afastar de um debate mais direto e sem policiamentos sobre corpos plurais e periféricos.

Dito isso, começo a recordar sobre a minha adolescência e sobre as formas e gestos que meus pais utilizavam para tentar reprimir, ou melhor, desmotivar qualquer tipo de exploração da minha vida sexual ou qualquer outro questionamento sobre gênero. Acredito que meus pais conversavam em segredo sobre os meus traços e trejeitos femininos que sempre foram apresentados de forma explícita dentro de casa e nas reuniões familiares.

De fato deve ter sido assustador ter que lidar com as suposições feitas sem a minha consultoria, já que a possibilidade de ter um filho “gay” era tratada como normal, mas a figura de uma “travesti” sempre foi tratada de forma abominável, e é até hoje.  

Quando a normatividade não está presente em nossos corpos, são muitos os desafios de quem cresce em um país que tem uma tradição judaico-cristã fortemente enraizada em sua cultura. Eu tenho 26 anos e quando comecei a fazer questionamentos sobre sexualidade e gênero durante a adolescência, percebi que sempre foi muito conflitante para nossos corpos a ideia de circular pela cidade, ainda mais em uma época em que debates sobre sexualidade e gênero não eram tão comuns e os exemplos de violências eram mostrados nos telejornais, por exemplo, o caso dos jovens (leia-se monstros) que agrediram um homem gay na Av. Paulista em 2010.

A minha percepção sobre quem cresce dentro de uma favela sempre foi de muito receio sobre o que poderiam falar de mim ou como os episódios de violência poderiam se apresentar em meu cotidiano. Lembro que durante o ginásio um grupo de meninos de um colégio próximo ao meu, foram de encontro a mim na porta do meu colégio e fizeram de forma super organizada uma fila indiana para que cada um tivesse “um momento de glória” em dar um tapa na minha cara. Naquele dia que eu pude perceber que as coisas não eram tão fáceis e comecei também a entender a dor que isso me causaria, principalmente ao ver algumas amigas chorando ao presenciarem aquele trágico momento, mas que nada podiam fazer.

Conversei com a Daiene Mendes, uma amiga jornalista e lésbica sobre quais foram as percepções dela durante o processo de se assumir como gay dentro de uma favela. Assim como eu, ela também cresceu dentro de uma igreja e foi naquele espaço que ela começou a perceber seus questionamentos. 

Daiene Mendes. Foto: acervo pessoal

“A favela é um lugar que há mais igrejas que bocas de fumo, onde a igreja sempre foi referência de santidade, paz e comunhão, e é exatamente por isso que o desafio de ‘se assumir’ se apresenta de forma maior. A favela é um ambiente extremamente conservador, nossos familiares são pessoas extremamente conservadoras.” explica a jornalista.

Em 2018 eu já estava trabalhando com educação e tive uma breve passagem como educadora na EduCap, que é uma ONG com um projeto de acolhimento para adolescentes e jovens LGBTQIA+ no Complexo do Alemão. Foram incontáveis os relatos que ouvi sobre pais e mães que falavam abertamente para seus filhos que preferiam que o filho morresse ou que se tornasse “bandido” ao invés de ser gay ou qualquer outra coisa que estivesse ligada à sigla. Enquanto eu colhia depoimento desses adolescentes, era constante o meu desejo de saber quais eram os desafios que eles precisavam enfrentar só para se sentirem livres. Sem sombras de dúvidas, dividir minhas tardes com aquela galera me trazia também a noção de privilégio que eu tinha quando eu tentava fazer uma comparação com a minha vida. Ainda em conversa com a Daiene, alguns apontamentos feitos por ela desenham bem a forma em que o preconceito se mantém de forma rica e estrutural em áreas em que debates sobre sexualidade ainda estão se tornando frequentes.  

“Não sei se tem um desafio em específico, mas é desafiador se assumir gay em um lugar que tem todo esse cenário e contexto conservador, em que você é o indivíduo que acumula desigualdades. Você além de ser pobre, de ser negro, de viver na favela, você ainda é gay. Então, você acaba percebendo que tudo o que você é está dentro de um pacote em um sistema que até hoje coordenou muito bem ou muito mal essas relações, e que acabam motivando uma pessoa nesta condição a se silenciar.” completa Daiene. 

Paradoxalmente aos exemplos citados em minha experiência enriquecedora e problemática como educadora em um projeto social, também tenho como referências alguns amigos que cresceram dentro da favela e que se notaram e se afirmaram “plurais” cada um em seu momento. Quando pensei em começar a escrever sobre as barreiras que um corpo LGBTQIA+ precisaria enfrentar dentro de uma favela, logo me veio à memória o Augusto Malheiros, ou melhor, o “Guto”, que é um menino gay, periférico e que hoje trabalha como auxiliar administrativo e consultor de imagem. A relação familiar para muitos dos jovens que crescem em zonas mais periféricas tende a ser composta por relações não saudáveis e pela falta de apoio de familiares tóxicos, mas fugindo da regra, a relação de amizade entre mãe e filho foi fundamental para que o Guto conseguisse ocupar outros espaços.

“Minha mãe sempre foi muito minha parceira e um dos meus maiores receios era que ela mudasse a relação que tínhamos mas pelo contrário, nossa cumplicidade e parceria só aumentou. Hoje quando peço algum tipo de opinião a ela, é sempre expressada no sentido de que o que eu escolher, ela vai me apoiar independente de ela achar que pode ou não ser uma boa escolha.” relata Augusto (Guto).

Augusto Malheiros. Foto: acervo pessoal

Entendendo a favela como um lugar extremamente conservador e historicamente carente de políticas públicas para que o debate sobre outros corpos pudessem ser mais constantes, episódios de preconceito certamente fazem parte da rotina desses corpos que entendem desde muito novos que existir é sinônimo de resistir. A sensação de medo de sofrer algum tipo de agressão física dentro do espaço da favela nunca me foi relatada ou percebida, mas o silenciamento atrelado à agressões verbais sempre estiveram presentes. Aproveitei o tempo que tive de conversa com o Guto e perguntei como era a relação dele com o preconceito e como ele lida com isso.  

“Acredito que pessoas preconceituosas são nada mais que ignorantes, mas sempre que eu sofro algum tipo de preconceito de uma pessoa de idade, procuro não responder porque muitas vezes entendemos que foi um outro tempo e as pessoas eram conservadoras ao extremo, agora uma pessoa jovem que já tem acesso a todo tipo de informação vir com algum tipo de agressão vai haver uma resposta sim, porque o primordial para se ser respeitado é respeitar o próximo, não é? Já sofri agressão verbal, o que lá atrás me deixava bem chateado, mas hoje em dia eu já consigo levar tranquilamente, dependendo de como esteja sendo o meu dia.” desabafa.

Dentro da pluralidade de nossas vidas, as experiências de mundo também são diversas. Como mulher transsexual posso afirmar que antes da transição pude perceber que a homofobia pode ser também agressiva mesmo sem qualquer tipo de contato físico, através de comentários, repreensões e demandas de normatividade, afinal, tudo bem ser gay, mas não pode dar “pinta”, não pode ser afeminado.

Quando me vesti de coragem e decidi passar pela transição de gênero, eu sabia que não seria fácil, mas que também seria gratificante ver através do espelho a imagem que sempre sonhei de mim mesma. Dentro dessa mesma coragem, aprendi a lidar e a ler as outras formas de opressões que estão bem estruturadas em nossa sociedade. A transfobia, a homofobia e o sexismo (leia-se cissexismo) sempre serão os maiores monstros, ou melhor, as maiores barreiras para que consigamos nos afirmar como somos. Há muito debate pela frente e através da plataforma do Voz das Comunidades estarei trazendo histórias de pessoas que cresceram no espaço da favela e também sobre quais foram as formas que encontraram para derrubar essas barreiras e a resistir a qualquer tipo de opressão. Sejamos livres para ser e amar quem quer que seja.  

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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