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Faz sentido compartilhar nossa dor enquanto nada muda?

Carta aberta em homenagem a Kathlen Romeu, e desabafo de um jovem negro que teme pela própria vida e pela vida dos seus
Foto: Renato Moura/Voz das Comunidades
Foto: Renato Moura/Voz das Comunidades

No último dia 8, fez um ano que foi assassinada Kathlen Romeu, mulher negra de apenas 24 anos, futura mãe com um futuro profissional brilhante. Kathlen era próxima ao meu círculo de amigos e transbordava vida e felicidade. Um ano sem respostas do Estado sobre mais uma brutalidade contra corpos pretos e favelados.

Pouco mais de um ano após escrever um desabafo sobre a chacina do Jacarezinho, volto a esse mesmo jornal para novamente compartilhar uma dor. A barbárie cometida no Jacarezinho em 6 de maio de 2021 e o assassinato da Kathlen ocorreram em datas muito próximas, com pouco mais de um mês de intervalo. O Estado, representado pelo bico do fuzil da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, tirou uma vida como se ela nada significasse.

Foto de Kathlen Romeu no Instagram
Foto: Arquivo Pessoal

Desde dezembro de 2021, sabe-se de onde partiu o tiro que assassinou Kathlen. Cinco policiais foram indiciados pelo Ministério Público por adulterarem o local do crime, a fim de forjar um suposto confronto com a facção local e justificar mais uma vez o injustificável, o fim de uma vida. Deveria ser óbvio, mas como para muita gente não é, reitero mais uma vez: não temos pena de morte no Brasil.

A polícia militar do Rio atuou, mais uma vez, de forma covarde, cruel, desumana e mais quantos adjetivos você achar que cabe. Utilizando-se da “Tática de Tróia”, na qual os policiais montam uma emboscada a fim de prender supostos criminosos, Kathlen foi a vítima com um tiro no peito, o que não deixa de me lembrar uma letra do Emicida, que diz “existe pele alva e pele alvo”. A proibição da covarde tática tramita na Alerj com o projeto de Lei Kathlen Romeu, que está na Comissão de Constituição e Justiça, aguardando parecer do deputado Marcos Muller.

Na incessante busca por justiça e pelo nosso direito à memória, esta semana foi marcada por uma série de homenagens a Kathlen, bem como cobranças ao poder público, organizada por seus familiares, amigos e instituições públicas e da sociedade civil, como o LabJaca, organização da qual faço parte; Faferj, Comissão de Direitos Humanos da OAB, Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Meu Rio, entre outros.

Na quarta-feira (8), ocorreu, durante a tarde, uma mesa com juristas e intelectuais na sede da Defensoria com o tema “O que falta para fazer justiça no caso Kathlen?”, pergunta que ainda reverbera em nossas cabeças. À noite, aconteceu a missa de um ano da morte da Kathlen na Paróquia Sagrado Coração de Jesus, no Méier, bairro próximo ao Complexo do Lins, comunidade onde ela morava e foi morta.

Peço licença para compartilhar a fala de uma amiga e colega de trabalho, Mariana de Paula, que era também amiga da Kathlen e estava presente na solenidade. “Na missa o padre falou sobre o sentido da vida ser o amor, sobre a gente ser conduzido pelo amor, ser unido pelo amor. Quando o fato da gente estar juntos lá era um ato de amor, que só estávamos lá porque amávamos a Kate, amamos uns aos outros, a força que a gente tem é movida pelo amor, a justiça que a gente grita é movida pelo amor. E aí eu fiquei pensando assim, né? Que é especificamente de como ela era esse combustível de amor com todo mundo, com a família dela, com os amigos dela, com o trabalho dela, com tudo que ela se propunha a fazer. Ela definitivamente nos 24 anos de vida foi uma pessoa movida pelo amor. Tudo que a vida dela teve de sentido foi conduzida e norteada por amor, ela era muito amor assim.”

Seguindo a programação, na sexta (10) acontecerá uma sessão solene, “Kathlen Romeu Presente”, na Câmara Municipal do Rio, momento em que serão entregues moções a pessoas envolvidas na luta por justiça no caso. Elas serão entregues pela vereadora e presidenta da Comissão da Mulher, Monica Benício, ex-companheira da deputada Marielle Franco, também assassinada no Rio, em 2018, em um caso que ainda segue sem solução.

Fechando a semana de homenagens e cobranças, no sábado (11), durante todo o dia, vão acontecer manifestações políticas e culturais no Beco do 14, no Complexo do Lins, local onde Kathlen foi assassinada e onde há quase um ano existe um memorial no qual amigos e familiares organizaram um festival de grafite e cobriram com arte as paredes cravejadas de bala.

Poderia escrever infinitas laudas para expor o meu sentimento e o sentimento de amigos, familiares e de qualquer pessoa com empatia e coração que acompanhou minimamente esse caso. Mas compartilho com vocês o link da carta aberta às autoridades e sociedade civil, assinada pelas instituições, amigos e familiares envolvidos na luta por justiça no caso, para que reflitam sobre o papel de cada um de nós na luta por uma sociedade mais justa, igual, e onde pessoas pretas como Kathlen e eu não sejam vítimas diárias de um genocídio em curso, nem que tenham medo de serem o próximo corpo a tombar.

Repito aqui a frase do título: faz sentido compartilhar nossa dor enquanto nada muda? Todos são responsáveis por uma mudança, e se o assassinato de uma jovem que carregava uma criança em seu ventre já não abala a ninguém, falhamos enquanto sociedade. Ainda sonho com o dia em que homens, mulheres e crianças negras irão se sentir realmente livres e longe do perigo. Até lá, seguimos lutando por justiça.

#KATHLENROMEUPRESENTE

Bruno Sousa
Jornalista e colaborador do PerifaConnection

PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento. Texto originalmente escrito para Folha de S.Paul

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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