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Requentando a velha falácia dos negros equivocados

Denominados por alguns como supremacistas antirracistas são na realidade referências que garantiram a sobrevivência de muitos
Foto: Reprodução
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Por:  Jaqueline Gomes de Jesus para PerifaConnection, na Folha de S.Paulo

“O sistema competitivo inerente ao modelo de capitalismo dependente, ao tempo que
remanipula os símbolos escravistas contra o negro, procura apagar a sua memória histórica a
fim de que ele fique como homem flutuante, ahistórico” (Clóvis Moura, 1983).

Pode a subalterna falar?

Desde a publicação, em 2007, da sua coleção de ensaios “A utopia brasileira…”, Antonio Risério endossou publicamente este espantalho teórico criado por pensadores brasileiros contrários à efetivação de políticas afirmativas para a população negra: o de que os movimentos negros fomentariam ódio racial e ao promoverem essas políticas que, no entendimento do grupo do qual ele participa, derivariam de categorias que foram equivocadamente importadas da experiência norte-americana.

A chamada ideologia “racialista” não à toa rima com o termo “globalista”, enquanto narrativas conservadoras em resposta aos avanços de grupos historicamente discriminados em todo o mundo.

F Maria Silvia, na 16ª Marcha da Consciência Negra em frente ao Masp, na avenida Paulista
Foto: Danilo Verpa/Folhapress

Entendo que essa linha de pensamento compõe um panorama político mais complexo, e velho do que parece.

O artigo publicado por Antonio Risério na Folha, em que ataca “supremacistas” de movimentos antirracistas, dentre os quais ele inclui intelectuais ativistas da excelência, que praticariam racismo contra brancos, judeus e asiáticos, corroborando com autores que frequentaram as páginas do mesmo jornal, dentre os quais Olavo de Carvalho, em especial quando este afirmou: “Alguém tem de dizer aos negros a verdade” (consta da edição de 2018 do seu livro “O imbecil coletivo”).

Famosos falam o que mudou e o que precisa mudar sobre racismo no país
Foto: Reprodução

E Demétrio Magnoli, com posicionamentos de décadas contra as ações afirmativas, caracterizando comissões de heteroidentificação como “tribunais raciais” que praticam o que ele e outros críticos chamaram pejorativamente de “psicologia racial” (conforme o seu livro “Uma gota de sangue…”, de 2009), ou em artigos recentes, em que corrobora com negacionismo histórico que tenta desvincular o sistema econômico escravocrata do regime de subalternização e racialização que fundamentou o racismo estrutural que enfrentamos.

Conheça livros e filmes com personagens negros que se passam por brancos
Foto: Reprodução

Há um embate prático em curso, que não se restringe a ideias, envolvendo recursos materiais, o qual não pode se enquadrado na lógica direita esquerda, dado que ambas as tendências abrigam defensores de falácias como a do “racismo reverso”, e aplicam rótulos a movimentos diversos de inclusão, tais como o de “identitaristas”, endossado por dirigentes de partidos que responsabilizam segmentos da sociedade civil organizada de mulheres, negros e LGBTQIA+ pelo avanço do fundamentalismo político-religioso.

Pior ainda, desqualificam a nossa produção intelectual dentro e fora de suas próprias afiliações, quando não nos equiparam àqueles que fomentaram o racismo científico em séculos passados.

Mais que atualização, o fato de ignorarem solenemente, por exemplo, o que se produziu na literatura especializada, desde os Anos 1990 do século 20, sobre gestão das relações étnico-raciais, de gênero e sexuais, sugere que um pouco de honestidade intelectual em reconhecer que não se interessam em dialogar faria bem a esses pensadores, seus agentes de comunicação e representantes no campo da política.

Enfim, o problema não é se podemos ou não falar, conforme a citação que fiz do ensaio de Gayatri Spivak no princípio do artigo. Parafraseando Lélia Gonzalez, o lixo já fala, e numa boa. A questão é que não somos ouvidas, tampouco lidas. Costumamos ser traduzidas (ou traídas, pensando aqui no antigo aforismo italiano traduttore, traditore) parcialmente, ou de maneira enviesada mesmo, em geral por aqueles que percebem seus privilégios, simbólicos ou materiais, ameaçados por nossos posicionamentos críticos, que certamente não são perfeitos, mas também não se reduzem às caricaturas que tentam vender.

Não se engane: nada disso é gratuito, tudo tem propósito, ainda mais em ano eleitoral.

Jaqueline Gomes de Jesus
Psicóloga com pós-doutorado em ciências sociais e história, é professora do IFRJ e da UFRRJ. Autora, entre outras publicações, do livro “Transfeminismo: Teorias e Práticas”.

PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento. Texto originalmente escrito para Folha de S. Paulo

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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