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#Depoimento: “Costuma-se romantizar a profissão”, diz professora de escola no Jacaré

"A grande maioria lutará diariamente para se manter dentro das regras e também sofrerão com isso."

EXISTIR NA FAVELA, RESISTIR PELA ESCOLA

Quando comecei o curso de Licenciatura em Artes Visuais na UERJ não imaginava em como a aplicabilidade nas escolas seria pequena. A universidade não me preparou para o que eu iria vivenciar nos próximos anos como professora concursada pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro e Prefeitura. Costuma-se romantizar a profissão, querendo nos convencer de que tudo deveríamos suportar em nome do amor à profissão. Não é amor. É teimosia. É rebeldia. É lutar contra um sistema perverso na qual as crianças mais vulneráveis estão abandonadas pelo poder público. Crianças e jovens com famílias igualmente marginalizadas, carentes de tudo.


Dou aula todos os dias num Ciep no Jacaré, primeiro fundamental. Atendo 13 turmas comcrianças de 6 a 14 anos. Muitas delas têm como únicas refeições as que são ofertadas na escola… Muitas chegam apenas de chinelo porque não possuem tênis ou sapato fechado ou apenas não podem ir com o sapato fechado por ter só um par. Eles têm uma vida difícil.

Suportam toda uma série de violências diárias, seja uma invasão ou operação da polícia, seja a prisão de um parente, morte, drogas, agressões… Algumas perambulam à noite pois não têm quem cuide delas, pois a mãe (ou avó) está dando duro para alimentar seus filhos e precisa deixá-los sozinhos. 

Tenho alunos que dormem nos abrigos pois foram apreendidos sozinhos pela noite carioca, longe de suas casas. Estou falando de crianças de sete ou oito anos. Algumas crianças recebem amor de seus familiares. Outros não. Tenho alunos que já me agrediram ou agrediram colegas de trabalho. Tenho alunos que tiveram tuberculose, pneumonia, hepatite…

Tenho aluno que foi atropelado, duas vezes, pois não tinha ninguém em casa cuidando dele. Tenho aluno que sofreu abuso… Tenho aluno que morreu devido à falência do sistema público de saúde. Ninguém que passa a fazer parte da vida deles fica o mesmo. Ninguém. Falar em meritocracia quando se vive essa realidade é cruel… Mas eles resistem. E o professor faz parte dessa resistência.

Mesmo com tudo isso, eles ainda possuem um brilho, um olhar, uma esperança. E mesmo em pedaços, caminhamos juntos e sempre na nossa teimosia de burlar esse projeto desubserviência à elite para o qual nos empurram. Eles resistem quando não se dobram à tentativa de domesticá-los, de humilhá-los, de fazê-los crer que merecem pouco. Eles sabem que merecem muito. Eles sabem. Alguns tentarão buscar meios de alimentar essa certeza do merecimento por outros caminhos, quebrando as regras sociais. E sofrerão com isso.

A grande maioria lutará diariamente para se manter dentro das regras e também sofrerão com isso. Que haja sucesso na jornada é o maior desejo do professor, diante da dureza que eles enfrentam, mas precisamos também de ajuda, pois é difícil trabalhar sozinhos. Precisamos dos pais, de forma presente na vida dos filhos. Mesmo com dificuldades, os pais que participam da vida de seus filhos recebem em troca uma criança feliz e capaz de gerir sua existência. Pais, vejam os cadernos de seus filhos, vão às reuniões, conversem com eles e com os professores, deixem claro que seus filhos não estão sozinhos. Sejam nossos parceiros. É cansativo, eu sei, mas garanto que valerá á pena. Resistamos juntos.

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PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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