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Elza Soares e o Planeta Fome

Uma breve análise das músicas do novo álbum da cantora. FOTO EM DESTAQUE - ELZA (Créditos: Daryan Dornelles/Divulgação/ND)

Por: Mariana Assis e Rick Trindade

Sobre o disco:

Com um pouco mais de um ano do disco Deus é Mulher, Elza Soares lançou em setembro o álbum Planeta Fome. Composto por 12 faixas, dentre elas uma autoral, a cantora carioca fala sobre fome de justiça, igualdade, sobre um Brasil que tarda a chegar, é desejoso e contraditoriamente não se vê esforços para alcançá-lo. O 34º álbum da carreira de Elza é assim: marcado por um presente sufocante e um futuro esperançoso.

O nome do disco, faz referência ao ano de 1953. Foi durante uma participação no programa de Ary Barroso, Calouros em Desfile, da Rádio Tupi, que o apresentador a questionou sobre suas roupas simples. Barroso disparou: “De que planeta você vem, minha filha?”. Elza respondeu: “Do mesmo planeta que você, do planeta fome”. 

Capa do CD “Planeta Fome”, assinada por Laerte.
Capa do CD “Planeta Fome”, assinada por Laerte.

Vida:

Nascida na favela Moça Bonita, no subúrbio do Rio de Janeiro, Elza Soares é filha de uma lavadeira e um operário. Casou-se aos 12 anos, por imposição do pai. Aos 13, já era mãe do seu primeiro filho. Com 21, já havia sepultado dois filhos e o esposo. Antes da carreira de cantora começar, trabalhou como faxineira, conferente em uma fábrica de sabão e empacotadora. Elza tinha 5 filhos e precisou desdobrar-se para que conseguir mantê-los vivos. 

A companhia de dança de Mercedes Baptista foi um divisor de águas na sua carreira. Após uma turnê na Argentina, Elza começou a ganhar notoriedade. No início dos anos 1960, gravou o primeiro álbum, Se acaso você chegasse, e lançou sucessos tocados até hoje. Ainda na mesma década, casou-se com o jogador de futebol Garrincha. O casal exilou-se na Itália durante a ditadura. Em 2000, já no Brasil, recebeu o título de Cantora do Milênio, pela BBC de Londres. Concedida a personalidades de grande destaque e importância, a Universidade Federal do Rio Grande do Su l(UFRGS), a titulou como Doutora Honoris no início de 2019. 

Impressões sobre o disco:

“Eu não vou sucumbir”, assim começa a primeira faixa do álbum. Essa frase soa como um desabafo de uma mulher negra que teve uma infância pobre, que já passou fome, que já sofreu violência doméstica, que já sofreu com o racismo e o machismo, e que em dias atuais, ainda se depara com um país extremamente machista e racista. É um grito de resistência em meio às passividades e descompromissos de brancos e ricos com a desigualdade econômica, social e de raça. Mas nada vai sucumbir Elza, o desabafo vira um grito de quem coloca a jangada no mar, de quem se arrisca, é um grito de “Libertação”. 

Charge por Allan Pinheiro

Em “Menino”, composição de Elza, há um pedido para que os jovens não deixem de sonhar e lutar por um mundo justo e igualitário. Independente das condições adversas a que foram submetidos, por um país que os furta de existir, pede para ressignificarem suas vidas. Com uma voz chorosa, como um recado de uma mais velha, Elza convida as novas gerações para uma conversa, quase que um sussurro. Sem descartar a realidade que muitos ainda vivem no país, sem casa e sem alimento, Elza pede união, pede que não haja destruição entre nós; eles são o futuro, somos o futuro!! Ainda que a realidade da juventude negra continue sendo cruel: jovem morto em supermercado; jovem chicoteado em supermercado, jovens tendo que abrir mão dos estudos e trabalhar para ajudar com as despesas de casa. E na metade dos curtíssimos 46 segundos da faixa, Elza insere o som do agogô (instrumento musical que chegou ao Brasil com os escravos africanos), evocando a África, para lembrar de onde nós somos e pertencemos. 

Seguindo adiante, a cantora traz em “Brasis” a dualidade desse país. O contraste de um Brasil próspero, mas que concentra a riqueza nas mãos de poucas pessoas. Um Brasil que de um lado há quem peça paz, saúde e faz amor, do outro há quem só mate. Um Brasil miscigenado (miscigenação fruto do estupro de indígenas e negras escravizadas, diga-se de passagem), mas onde o racismo, o machismo e a homofobia imperam.Elza manda a gente ir para frente. Sigamos! 

Em “Blá, blá, blá”, Elza convoca todos a repensarem suas posições, as ditas verdades inquestionáveis e, principalmente, o quanto a desonestidade intelectual os massacra diariamente. Elza é categórica em apontar que precisamos aprofundar e enriquecer o debate para avançarmos. Ainda assim, Elza pede motivos (fazendo uma referência à música de Tim Maia) para que ela vá embora para outro lugar, abandonando seu país, ao invés de lutar e acreditar na mudança. 

“Comportamento Geral” é o que a sociedade espera. Espera que estejamos sempre no lugar de subordinação, que nos contentemos com as migalhas que recebemos, como se fosse apenas o que merecemos. Tudo isso com um sorriso no rosto, agradecendo pelo pouco, como se o muito não fosse pra gente. E devemos nos contentar com a cerveja, com o samba e com o com carnaval. Enquanto eles gritam “Você merece!”.

Música que não carrega um contexto social explícito, “Tradição” é um convite a se entregar à emoção, se jogar na vida, mesmo que esteja tudo uma bagunça, uma confusão. Elza convida você a se jogar nesse turbilhão.

“Lírio Rosa” é uma linda declaração de amor. Fala daquele encontro de almas, em que o amor faz com que os amados brilhem como um sol. 

Quem já cantou que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, Elza hoje declara que “Não Tá Mais de Graça”, um recado pra essa sociedade que continua exterminando a população preta e pobre desse país. A canção é uma ressignificação icônica da música “A carne”. É interessante notar o deslocamento temporal que repercute na sociedade de hoje. A letra retrata a realidade das pessoas que vivem nas favelas deste país, que são obrigadas a lidar com a morte todo dia. Endereço das balas perdidas, e nós sabemos bem quem desenha o trajeto dessas balas. E como Elza mesmo diz “é bala autografada”. Na canção ainda há uma sutil crítica a personalidades que poderiam usar de sua visibilidade para falar sobre os problemas desse país, mas não  fazem. Em contrapartida, ela cita nomes de pessoas importantes que lutaram em busca de dias melhores. E embora o racismo ainda seja estruturante no Brasil, há avanços significativos na inserção de negros nas universidades públicas, por exemplo.  

Quem não sonha com um país igualitário? Sem preconceitos, corrupção, onde a prioridade do Estado é fornecer saúde, educação e lazer para toda população. Quem não sonha com um país sem racismo e homofobia, onde a fé não seja usada como um meio de enriquecer alguns? Quem não sonha com um país onde a justiça não seja injusta e condene só aqueles que já estão às margens da sociedade? Elza também sonha com esse país, e em “País do Sonho” ela promete encontrá-lo e chamá-lo de Brasil. 

“Virei o Jogo” mostra porque Elza é Elza. Mostra a força de uma mulher negra, força ancestral. Forjada no não, virou o jogo, indo na contramão, afirma sim até o fim. Não descarregue sua raiva em Elza, sua arma não vai abatê-la, ela é todos os sins, tem todo um povo a protege-la. Elza não anda só, Elza não está só. 

Elza no Rock in Rio 2019 – Foto: Renan Olivetti/Divulgação

Em sua apresentação no Rock in Rio de 2019, onde cantou grande parte das canções aqui descritas, Elza não deixou de fazer com que o seu show tivesse um cunho político e usou a sua voz para protestar.  Pediu que as pessoas acordassem, que é preciso lutar, gritar, ir pras ruas e aprender a votar. 

Ao longo do disco, e também dessa pequena análise, fica claro qual a fome e sede Elza ainda sente. E você?

Salve Elza!

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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