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Segurança Pública nas favelas e a cobertura do projeto rodeado de violência e violações

Dados revelam que UPPs não cessaram violência e moradores relatam sofrimento e sequelas profundas durante o período
Protesto na frente da UPA pelos mortos na chacina em julho de 2022 Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades

Essa é a edição número 100 do Voz das Comunidades. São incontáveis os motivos para celebrar, mas também faz-se necessária a reflexão de um tema recorrente por aqui: qual a segurança pública pensada para as favelas, qual legado dela até aqui e, principalmente, qual projeto para o futuro?

Rene Silva, fundador do Voz, relembra os momentos difíceis do veículo. “Quando a gente fala de 100 edições do Voz das Comunidades, já é um desafio muito grande, porque é um trabalho que já tem mais de 18 anos de existência. Em alguns momentos, a gente não conseguia ter recursos financeiros para manter o jornal na periodicidade mensal. Então, é um desafio muito grande chegar a essa edição número 100”, conta.

Mas Rene enfatizou o papel do jornal ao ecoar a voz dos moradores, principalmente quando o assunto é segurança pública. “A gente já contou muita história nesse jornal. A gente já combateu muito as diversas mentiras, as diversas acusações que foram feitas em relação aos moradores, vítimas de violência, vítimas de operações policiais”. Ele lembra uma das capas mais emblemáticas do jornal impresso, revelando o tempo em que o Complexo sofreu com constantes tiroteios e estampava a frase: 100 dias sem paz.

A herança que não se quer herdar

O Complexo do Alemão, palco de uma das maiores Unidades de Polícia Pacificadora do Rio de Janeiro, se tornou um símbolo da falha da estratégia de “pacificação” implementada pelo governo estadual, chefiado pelo ex-governador Sérgio Cabral. Dados do Instituto Fogo Cruzado, compilados pela diretora Maria Isabel Couto, revelam que, entre 2017 e 2023, três dos cinco bairros com maior número de tiroteios na cidade eram áreas sob UPPs, incluindo o próprio Complexo do Alemão.

Em entrevista ao Voz das Comunidades, Couto questiona a eficácia das UPPs em promover a segurança pública, afirmando. “É impossível dizer se as UPPs geraram um agravamento dos conflitos nessas regiões. Mas, a partir desses dados, é seguro dizer que as UPPs ao menos não produziram efeitos sustentáveis de “pacificação” das áreas, como previsto no projeto.”

Policiais acompanham corpos de vítimas da chacina em julho de 2022
Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades

A diretora de dados revela os números de uma realidade que o morador já conhece e aponta. “Não houve mudanças de longo prazo. O que podemos dizer é que, se a ideia do projeto era de trazer mais segurança pra população, esse projeto não vingou e a população continua sofrendo com os mesmos problemas de falta de planejamento para conter os avanços da violência armada. Foi no Complexo do Alemão que ocorreram três das 20 maiores chacinas policiais ocorridas entre 2017 e 2022, totalizando 35 civis mortos. Os moradores do Complexo do Alemão estão mais seguros ou mais traumatizados?”, indaga.

Sem direito ao luto: falta de Justiça e descaso

Adenize de Moraes, mãe de Caio, mototaxista alvejado e morto por um policial da UPP durante manifestação popular na Grota, Complexo do Alemão, em 2014, relata o sofrimento e trauma causados. “As UPPs foram o projeto mais falido que eu vi acontecer no nosso estado. Foi um projeto que acabou com várias famílias, incluindo a minha. Na teoria era perfeito. Na realidade, tivemos vários jovens executados de maneira covarde. Quem executou o projeto foi com sede de sangue e não para proteger a comunidade. Sem abordagem, sem mandar parar, atirou primeiro e o meu filho morreu com um tiro nas costas”, conta emocionada.

Adenize ainda espera por justiça após uma década da morte de Caio. “Já vão fazer 10 anos e ainda não teve o julgamento do meu filho, está marcado para junho, mas se meu filho que tivesse matado um policial, ele já teria sido julgado. Mas no caso desse policial que matou o meu filho, ele continua livre nas ruas. E o que mais me dói é que o governo nunca chega para a família para pedir desculpas pelo que seu agente fez”, diz. Um mês antes da morte do mototaxista, o governador responsável pela segurança pública, Sérgio Cabral, renunciou ao cargo, assumido por seu vice, Luiz Fernando Pezão. Cabral foi preso posteriormente acusado de desviar 224 milhões de reais dos cofres públicos.

Casa alvejada em operação no Complexo do Alemão em julho de 2022
Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades

Um ano depois da morte de Caio, o Alemão perde o menino Eduardo de Jesus, de apenas 10 anos, com um tiro na cabeça na porta de casa. Testemunhas indicam que o disparo partiu de outro policial da Unidade de Polícia Pacificadora. O agente apontado como autor do disparo alegou confronto, que foi descartado no mesmo ano pela perícia. 

A família reuniu mais de 40 vídeos de testemunhas, laudos e perícia, mas o caso não avançou e segue arquivado pelos tribunais. As apurações ocorreram em 2015, quando a Delegacia de Homicídios era chefiada pelo então delegado Rivaldo Barbosa, preso recentemente como suspeito de ajudar a planejar a morte da vereadora Marielle Franco. Em relato ao G1, Terezinha de Jesus, mãe do menino, conta que a prisão de Rivaldo aumentou as suspeitas de interferência da polícia no caso de Eduardo. Segundo relato, o ex-delegado hospedou a família em um hotel de luxo na Barra da Tijuca com intuito de evitar pressões.

Ainda ao portal, Terezinha reforça o pedido para o desarquivamento do caso e sua luta incessante por justiça anos depois. “Eu venho lutando há mais de oito anos, eu não tive luto. Estou tendo a luta e só vou descansar quando eu ver essa justiça feita. Vou provar o que aconteceu com o meu filho, que a polícia chegou, matou o meu filho, e ficou por isso”, conta.

Terezinha de Jesus com a foto do filho Eduardo em 2015
Foto: Renato Moura / Voz das Comunidades

No dia 24 de abril, a Anistia Internacional denunciou falhas na proteção dos direitos humanos no Brasil através de relatório que expõe a violência policial desproporcional contra negros e mulheres, além de deficiências no acesso à saúde e educação de pessoas periféricas. A instituição aponta que o Brasil é um dos países com maior desigualdade do mundo, o que contribui para diversas violações de direitos e cita casos de mortes e abusos policiais ocorridos em favelas do Rio de Janeiro.

O documento critica a falta de medidas eficazes para combater a violência dos agentes de segurança pública e cobra ações contundentes do governo para reduzir a desigualdade e garantir a proteção dos direitos humanos de todos os cidadãos.

Um novo modelo de Segurança Pública

A história do Complexo do Alemão com as UPPs serve como um lembrete da necessidade de um novo modelo de segurança pública. Um que priorize o diálogo, a comunidade e o respeito aos direitos humanos.

Para Rene, o debate é fundamental, além de atravessar outros direitos. “Abordar a segurança pública dentro do jornal impresso sempre foi uma parte importantíssima e de muita credibilidade do Voz das Comunidades, porque nós temos uma equipe de jornalismo séria que aprofunda os fatos, que entende e luta pelo direito dos moradores, pelo direito da vida […] Desde os princípios do Voz das Comunidades, a voz que mais importa para a gente é a voz do morador”, reforça.

Um das UPP do CPX do Alemão
Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades

A equipe do Voz das Comunidades entrou em contato com a assessoria de imprensa da Secretaria Estadual de Segurança Pública para obter dados sobre os marcos deixados pelas Unidades de Polícia Pacificadora, o que mudou no campo da segurança pública com a implantação do projeto e quais políticas públicas pensadas a partir de sua descontinuação. Além disso, solicitamos informações sobre a forma atual que a segurança pública está sendo pensada. A demanda foi encaminhada por eles para a Assessoria Especial de Comunicação Social da Polícia Militar, que respondeu em nota que a atuação da corporação é pautada por critérios estratégicos, pelo planejamento prévio e transcorre dentro do previsto na legislação vigente, sempre com a preocupação central em preservar vidas. Afirmou que o projeto da Pacificação já possui mais de 15 anos e segue em curso através de Unidades de Polícia Pacificadora, que beneficia muitas crianças, adolescentes, adultos e idosos em 33 comunidades, através de iniciativas sociais. Por fim, informou que investe em tecnologia, em treinamento e capacitação, assim como em infraestrutura e logística, que “vem se refletindo na obtenção de quedas contínuas nos principais índices de criminalidade, o que afeta diretamente a sensação de segurança da população do Rio de Janeiro.” 

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PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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