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OPINIÃO | Familiares tóxicos e o isolamento social

Os desafios enfrentados por quem precisou estar com familiares tóxicos no período de pandemia

Ilustração: Raífe Sales / Voz das Comunidades

A pandemia do novo coronavírus trouxe para muitos a então excelente oportunidade de estar mais próximo de seus familiares. Excelente porque muitas dessas relações não são vividas na prática por conta da correria do dia a dia que impossibilita que a interação seja frequente e que o afeto seja exercitado. Pensei em trazer relatos de outras pessoas para compor a logística desse texto. Pensei em me distanciar e falar sobre esse tipo de trauma de forma com que eu não parecesse vulnerável e sim forte demais para lidar com essas adversidades do corpo alheio. Mas, então, resolvi escrever sobre como tem sido para mim, uma mulher transsexual, vivenciar esse isolamento com meus familiares. 

Escrevo essas palavras sabendo que falar sobre afeto entre meus familiares é uma realidade muito distante, afinal, desde que tudo isso de pandemia começou as agressões se tornaram mais frequentes do que já eram.

Pouco antes do período de isolamento se concretizar, precisei voltar para a casa dos meus pais para me organizar enquanto mudava de trabalho. Entreguei a casa em que morava, na tentativa de conseguir um outro lugar que o valor correspondesse a um salário, que tinha lá suas problemáticas, mas que iria me garantir o aluguel e uma ida ao mercado. Logo o mundo tomou conhecimento da gravidade de um vírus que se propagava de forma rápida e letal e os danos desse mesmo vírus não demoraram a aparecer na minha vida. Não que eu tenha ficado doente. Me isolei do mundo dentro de um quarto na casa dos meus pais tentando me assegurar que a saúde estaria em dia e que estaria disposta a fazer o meu trabalho como educadora de forma ágil e criativa. Porém, não demorou muito para que eu perdesse meu emprego por conta de uma instabilidade no setor da cultura. Então, o que era temporário, se tornou permanente e doído. 

É estranho ver nas redes sociais relatos de pessoas que passaram a aproveitar mais o seu tempo com pais, mães ou com qualquer outra pessoa de forma saudável nesse período. Desde março posso precisar que foram poucas as vezes em que pude levantar com um silêncio dentro de casa. Meu pai passou a me acordar repetindo de forma contínua um nome que não é mais meu, ou melhor, nunca foi. Também passou a ter o hábito de guardar qualquer correspondência que tenha chegado aqui em casa com esse mesmo nome, só para ter em mãos as provas que precisa para me agredir de alguma forma. Para ele, não violenta, claro. Para mim, é como se fosse uma ferida aberta em que ele enfia o dedo todos os dias só para me ver sofrer. Já a minha mãe passou a procurar formas de mostrar que não há espaço para mim dentro da casa que um dia já entendi como “lar”. Pro home office a gente precisa no mínimo de uma cadeira e uma mesa, o que tratei de organizar num cantinho da casa. Mas ela, com a sua perspicácia, conseguiu arrumar um jeito de fazer o quarto espaçoso parecer pequeno a ponto de não caber mais uma mesa de pouco mais de 50cm por 40cm.  “Você precisa dar um jeito na sua vida” é algo que ela repete incansavelmente, como se o home office fosse um momento de lazer e não de trabalho. 

Certa vez escrevi um texto em que eu relatava que me sentia estranha quando fazia contato com os pais. Nada mudou. Eu sempre produzi dentro e fora da academia, e das formas mais diversas e acessíveis possível, mas ainda assim eles continuam a ignorar a minha existência. Não sei se é cedo demais para afirmar que não há certidão, RG ou determinação judicial que possibilite a ideia deles me enxergarem como eu realmente sou. Também já escrevi que espero com muita paciência para experimentar o amor de meu pai e minha mãe quando eles me reconhecerem como filha deles, mas confesso que a ignorância às vezes parece ser a única peça de roupa que cabe em algumas pessoas. Por mais que não sirvam mais, percebo que há uma teimosia em que o 52 tenta usar o 38. 

Houve dias em que pensei ter privilégios se comparado com outras pessoas em situação de vulnerabilidade social. Talvez influenciada por uma “influenciadora” com uma positividade tóxica em seu discurso. “Você pode estar sofrendo de transfobia, baby. Mas, pelo menos você tem um prato de comida e um lençol para se cobrir quando fizer frio”. É esse tipo de conteúdo com que a gente se depara no feed colorido e bonito demais do Instagram. Ainda assim me coloco no lugar de entender as limitações das pessoas que produzem falas, toques e olhares tóxicos contra mim. Me pondero para não me sentir privilegiada por saber que essas mesmas pessoas não me agrediram fisicamente, tendo em vista que há inúmeros casos pelo país de familiares que espancam e matam com requintes de crueldade todo corpo que performa aquilo que eles desaprovam. Motivados por religião ou não, estou relatando um dado. Tá tudo errado e ponto final. Como reflexão, deixo o exercício de imaginar como tem sido a vida das pessoas que nos cercam. 

Pode parecer cruel demais, mas, o Instagram não mostra a realidade dos fatos.

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PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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